terça-feira, 9 de agosto de 2011

Cavalheirinho

Arretadinho e encabulado espiava atrás do arbusto. Estava tão compenetrado que, ao som de sua mãe chamar, fazia que para cima e para baixo com a mão, como se a mandasse silenciar. Onde já se viu me mandar ficar quieta, menino, a mãe dizia. Ele não se ocupava, ainda que brevemente, em prestar atenção ou responder a repreensão de alguma forma pois sabia que dali a alguns instantes acabaria caindo nos braços do édipo e do calor materno. Mas ainda não. Agora era a hora de reconhecer o cenário, e estava muito entretido nessa função. Apertava os olhos como um míope quando tenta enxergar quilômetros a frente, se é que a intenção fosse mesmo enxergar alguns metros dali, ainda que meticulosamente, centímetros exatos. Falava alto consigo, repetia que era uma missão louvável e se equilibrava naquela posição cocórica que o fazia tremer ainda mais freneticamente que a ansiedade a qual era gerada naquele aspecto de situação. O espectro ia bem, o vitral estava parado a frente e tudo soava muito calmo. A Dona Maricota acabara de colocar as roupas no varal pendurado entre dois arbustos no quintal. O jardim da Dona Maricota era povoado de espécies vegetais ilustres, e a boa Senhora o deixava ajudar nos cuidados com o jardim. Pois sim, ele se sentia extremamente atraído por aquele jardim, de modo a fitá-lo o dia todo, ao que ruía risonha Dona Maricota e chiava orgulho aos ouvidos da mãe. Meu filho aprecia as coisas boas da vida. Meu filho enxerga a simplicidade, veja que menino sensível para os dias de hoje, e olhe se não será um cavalheiro, Dona Maricota! Será sim um cavalheiro, cantarolava Maricota, enquanto o observava com aquele olhar maternal e de apego, um olhar de quem viu a vida passar, se enfeliza e se entristece ao mesmo tempo com as pequenas alegrias juvenis. Mas haveria ele de tirar os olhos do jardim e colocá-los no alvo. O alvo, por si, não era alvo, o objetivo final daquela missão era o atingido. Para dizer-lhe, no calor da intimidade que temos aqui, a atingida: que a neta de Dona Maricota, o que era aquilo, Meu Deus? A menina não hesitava em perturbar a vida do pobre cavalheirinho, que a príncipio a viu como inofensiva. Então, desde que quando ainda muito criança o menino a puxou os cabelos, encasquetou ela com ele e passou a usar de mil artifícios para evitar a presença daquele. O pobre cavalheirinho não tinha chances e oportunidades lhe faltavam quando a tal estava por perto- Tão logo o via e se punha a reclamar: Vó, Emergaldo usa o estilete contra sua janela, Vóo, aquele peste pisou no meu pé e saiu correndo, Vóoo, viu aquilo, Ele e seu amigo acertaram a bola em seu jardim. Por Deus, menina, aquiete-se, dizia ele, e não bastava, era árduo e cansativo. E merecia vingança, era de opinião sustenida, Horácio, o amigo. De vingança iluminou-se o olhar do pobre garoto arrependido das épocas em que puxava o cabelo de Estefânia, quando viu Dona Maricota colocar o varal, naquela tarde. Pois há muito esperava por um dia como aquele, de sol, de tranquilidade. Estefânia estava dentro da casa, com certeza se pora a brincar de bonecas no quarto todo cor-de-anil que a Vó tinha feito a ela para quando a neta viesse visitar-lhe, semanalmente. Aliás, era invejável o quartinho, com papel de parede de rendas, cortina branca e o paraíso de brinquedos- o qual Emergaldo não podia frequentar, como já é notável. E sim, lá estava o modesto varal de fio de ferro enferrujado, no lindo jardim de dona Maricota. O menino se entrelaçava entre arbustos, ainda se equilibrando e sentindo a dormência dos pés, das pernas e no bum-bum. Que coisa, Dona Maricota demora a sair do quintal e, quando sai, Horácio se enrola a chegar. Menino enrolado, se punha a resmungar Emergaldo. Abortaria a missão logo menos, se enxergava incapaz de realizar o plano todo sozinho, afinal. Já tinha combinado tudo com Horácio na ligação que fizera a esse um pouco antes, contando das peripécias contidas no varal daquela tarde. O menino continuou a resmungar, a mãe de tempos em tempos lhe perguntava o porque tanto resmungava, afirmava ter feito bolo de laranja para o café da tarde e questionava a não-presença Horaciana. Esmergaldo se enciumava, como se Horácio ali fosse Rei, pois vê se pode. Mas continuava, ainda que com leves desvios, a focar o cenário e entreter-se em sua missão. Dali a pouco aparece Horácio, um tanto quanto esparfalhado, gritando Ois à toda vizinhança. Aquiete-se, injuízado, dizia Emergaldo, de voz abafada. Desculpa, cara, minha mãe me obrigou a fazer compras sob pena de abortar missão! Justificava-se o amigo. Pois se é assim, se apressa, enfático era o Quixote. O Sancho logo passou ao outro lado do jardim, sinalizando. A mãe observava inquieta da janela da cozinha, mas preferia não corromper o fluxo que era ilustre e divertido. A fazia bem observar os reflexos de sua cria. O menino olhou para o objeto em questão: roubariam a calcinha de Estefânia! E só havia de ser dela, cinza com rendinhas cor-de-rosa. Pois sim, de Dona Maricota é que não era, afinal. Logo que viu o tratante dejeto, tratou de avisar seu Sancho, que se mostrou alegre e disposto para execução do plano. E lá estavam os dois, acreditando na inocência relativa de seus atos. Foi rápido que veio o sinal maior por parte de Horácio. A pedra cruzou a visão, não vinha ninguém. Horácio mostrou de longe o estilingue e fez que sim com a cabeça, sorrindo. Emergaldo respirou fundo, fez sinal afirmativo, sorriu, prendeu a respiração e se colocou a correr pelo quintal de Dona Maricota, ao que Estefânia se colocou a gritar: Vó, a peste, está correndo no seu jardim, rápido, vó, venha ver. O que foi Esteffânia, estou lavando sua roupa, acalme-se que não tenho tempo para suas intrigas agora. Mas Vó, venha ver! Emergaldo corria desesperadamente mais, almejando a respiração e o tom vitorioso que, sabia, estava por vir. Horácio deu um salto e batia com os dedos, num espetáculo de ansiedade. Viu o amigo agarrar como se fosse sua a pequena calcinha cinza e rosa, e retornar em um meio-círculo ao que caiu na cerca de arame, na qual arranhou a perna demasiadamente branca em contraste com a bermurda marrom, a pulou e desceu barranco abaixo, esperando ansiosamente por Horácio, o qual corria logo atrás e às gargalhadas. Precisava ter visto a cara dela da janela, foi logo contar a avó. Dona Maricota saiu, viu varal e diz não sentir falta de nenhuma peça. Ainda deu uma piscadela para mim, veja só! Ria mais. Colocou a menina de castigo, Emergaldo, veja isso! Ria. Ria. Emergaldo estava ofegante, mas da respiração desesperada emergia a satisfação do dever cumprido. E então, que faremos com isso aqui? A que Horácio respondeu, vamos enterrar ou levar de troféu. Pois leve você de troféu, minha mãe há de me matar e devolver a Estefânia. Enterremos. E enterraram. Emergaldo colocou um meio sorriso no rosto, aquele de orgulho de homenzinho. Esboçou. A mãe notou algo de errado quando os meninos chegaram com os pés de lama em casa. Notou o sorriso. Ao fundo me sinto triste por Estefânia, falou o Emergaldo, baixinho. Como foi? Questionou a mãe. Nada não. Sentaram. Pesou. Comeram. Por Aí, Cavalheirinhos de terno e gravata, véus e grinalda.

domingo, 7 de agosto de 2011

A saia vermelha

Aquela saia vermelha tomava todo o espaço da vista abaixo. Olhou para o espelho repousado na parede de sempre. Reparou mais uma vez na discreta trinca que o caracterizava de tal maneira. Tal maneira! Deixou a serenidade a tomar conta: dá-lhe as contas da vida e da saia vermelha acetinada. A saia vermelha que chegava aos pés, que podia passá-los e ir além. Reclinou-se ao som de um triste tom, formando um arco com a própria coluna. Alcançou a ponta da sapatilha e se fez alongar lentamente. Sentiu o trincar. Para direita. Trinca, esquerda, trincou. Dali já saiu para o salto. Pois se fez em cima, girando frenéticamente, com o soar do vermelho em seus intrínsecos olhos, fitados no ponto de equilíbrio. Suba em direção ao sem fim, joga-te ao lado como prisioneira de si, entorne a convulsão do sangue pulsante, estimule o quanto deve gritar o jorrar do interno para então adormecer na quietude do buraco daquele chão tão e todo, por tudo, especial. Do leve sono, colocou-se em pé, deu voz às vozes, suspirou no velho espirro, deu-se para movimentos leves, e leves, penosos, voantes. E voa, para cima, para os lados. Os braços iam num confluir intenso, dispersavam e tímidos, e novamente, e esvoaçantes, coalesciam na imensidão embutida. Jurou o salto épico, olhou para platéia de si, sorriu brevemente o sorriso de dor contida por felicidade, jogou-se do precipício, se fez marcar e se fez dizer, se fez tomar e beber, se fez entregar, ouviu falar. Falaram de si, falaram dos outros, falavam dela. Travou a ponta do pé sentindo o urrar dos dedos, travou os braços como numa cruz e atingiu um ponto de equilíbrio. Abaixou a cabeça, respirou fundo, mordeu os lábios e suplicou à Deus baixinho. Disse não se entregar, gritou e explodiu. E vôou intensamente o vôo de pouso, com as pernas bem ditas e bem resolvidas do destino a tomar, abraçaram a vida e entenderam por sua, seguindo por baixo de todo aquele pano uma linda aparência de segurança cíclica em si. Daquele momento em diante se resolveu protagonista, entregou-se ao espelho, disse ter visto mágica, não entendeu o que aconteceu, atribuiu tudo à queda e sorria em paz. Na paz de pousar e derrubar uma lágrima por inteira indiferente, mas endógena e possuída da experiência por completo. De vida e da vida, assim como tudo, diga-se de passagem, era tudo, tudo que estava lá.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quanto às manias

Tocava uma música loucamente clássica de fundo. A mesa cintilava, não sabia bem daquele material. Pela mania de manias, lá estava ele. Os cabelos grisalhos davam aspecto largado, batido. Os óculos estavam largos. Já há algum tempo não comia. A mulher dizia, não sabia o porque do bem bolado de TOC. Fala de TOC, TOC, TOC. O único TOC que sabia era do que afirmava ouvir quando batia à porta daquele laboratório, o qual lhe arrancava o marido por dia, vezes, dias, anos, ano a ano. Pois já diagnosticava para vizinhas o rústico certeiro destino que levantava o soar das vozes abafadas das redondezas: Pois veja, presta atenção! Chamo-lhe louco, chama-se maluco, sanatório. Não comparece ao serviço, diz que agora trabalha em casa, e veja se pode, entre tantas fórmulas, haveria mesmo de ficar maluco. E pobre coitado, o trancafiado. Pois por vezes a Dona Senhora Mulher enxergava no marido aquele olhar pouco despertado desde que o tal resolvera desenvolver suas misturas caseiras. O olhar interessado do Homem que lhe despertava um frio na espinha, e borboletas no estômago. Suplicaria ali mesmo, olha para mim, olha, olha, ó. A voz sumia. Cabisbaixa. E, ó, que como por vezes terminava após uma sessão de arrumação, a vizinha vinha ajudar, ficava linda para ele nem sair. Penteava os cabelos para não ser vista, perfurmava-se para as paredes. A vizinha vinha com o mesmo discurso, hoje em dia isso é bom, ouviu na TV falar de auto-estima, perfuma-se, mulher, para si! Gasta o dinheiro desse homem, o endiabado que nem te liga. Outras vezes, aconselhada, dizia esquecer da comida, decidia por si viver introspectiva, visitava os pais, voltava, assistia à TV. E, quando o via, insistia aquele em falar de TOC e de obsessão. Por demais! Não sabia o que era obsessão, que falta de senso. Se sentia humilhada, fantasiando os antigos bailões da onde toda sua compreensão foi retirada. Mas aquele dia foi diferente. Saiu daquele galpão com ares de novo. Ainda repetia TOC, TOC, TOC, mas, dessa vez, com mais entusiasmo. Era quase um entusiasta, veja bem! Olhou-a com aquele olhar de descoberta, e ela lá, com o vestido em trapos e o cabelo jogado, acanhou-se, envergonhada. Ele a puxou para si, abriu a champagne de dezessete anos, ambebedou-se, a amou, e a girou na valsa eterna, girou, e girou. Rodou a barra da saia da velha Moça. Comemorou aos infinitos Deuses, agradeceu e Ela nem soube porque. Os suores se molharam e as salivas, enfim, se selaram. Ela disfarçou naquele sorriso torto, plantou esperanças como se renascesse um morto, e deitou na espera do corpo quente dele logo ao lado. Repousou uma xicára de chá com pinguinhos de pinga na cabeceira do Homem que amara, amou. Ama. Porque não? Ama. Ele, antes de se recolher, o que há muito não fazia, resolveu tomar um banho. Tinha ali uma mania que tanto tenta entender de manias, que tanto, por toda a vida tentava resolvê-las. Pois só tomava banho com as mãos para cima, e não podia ser de outro jeito. Pensou em si. Pensou na Mulher na cama. Pensou no que sempre fora. Fez força. Fez força consigo, força da mente. Abaixou as mãos e os braços. Fitou-os. Balançou a cabeça aos lados e logo voltou a suspendê-los. Algumas coisas não mudam. Nem com descobertas coringas. Nem com fórmulas milagrosas. E lá estava ela, esperando o soar de TOCs vindos dele, com toda a ansiedade do que ignorava ser algo, mas, por hoje, era, por demais, bom. Olhou para cima e sorriu com ênfase. Ele saiu saltitante do banheiro. As mãos ao alto, se abaixavam lentamente. Santa Hipocrisia. E que, quão, Santa. Amém.

O Oi e o Tudo Bem

Só de ouvir me vêem uivos, vocativos e orgulho dominando as úlvulas. As cordas tremem, vejam porque escrevem. Estão abominando os Ois. Os mais íntimos os trocam por nomes, Amores, Amigos e até, por vezes, usam um tom enfático, animado. Os não íntimos, por Chefes, Colegas, Camaradas e Reis. Até então, o Dom não bate a porta. Digo sobre orgulho dos que não se falam, dos que não são inferiorizados de modo algum, e, sobretudo, dos que se pensam, juram ver e se sentem inferiores. Por assim dizer, Oi. Simples Oi. E, pois, quando era criança, lembra da mãe dizendo, diga oi para ser educado, dizia, pergunte se está tudo bem para ser simpático, e frizava, timidez se confunde com antipatia. Hoje decidira que não fazia questão da simpatia. Não fazia questão de agradar os que gostam e os que gosta. E tomara uma forte decisão de que os outros teriam de lidar com cumprimentos mais diretos, que não traduzissem afeto, mas apenas uma conversa necessária, entende? Uma conversa por vezes criativa, introduzida por piada, por Hi, Hello, Buenas Noches, mas uma conversa nada mais que sem cumprimentos ideais. O que seria o ideal? Tornar a conversa que se deseja necessária. Fazer soar um trabalho, um favor, um destoante da vida, algo como que uma obrigação, entende? Tudo em volta se tornara um monte obrigatório, de modo que nem mesmo a morte era opcional. A vida se tornou de chatos e os que faziam bem era a obrigação mais inoportuna: dos Nãos da vida, tirou-se o grande tamanho do desprezar para receber, do esnobar para tornar difícil, do chutar para ver correr de volta, de tudo que vai e vem. E, deveras, os que se fazem dificeis e complicados? Tão cansativo. Cansa. Uma solidão presa em si, de poucos verbos, de ansiedade, de não ação. O sujeito passivo e vitimizado, de agora para adiante, para sempre e mais sempre. Agora atente-se para o que corria nas ruas e chegava ao ouvido de todos! Préstimo ao que descrevo no que segue, o teor é fofoca. O Oi dizia com lágrimas nos olhos ao Tudo bem que sentia saudade, que sentia a falta de humildade e pedia perdão pelo pecado que não cometeu. O Tudo bem aos prantos pesava por algum dia ter assumido aquele caso de laço, vínculo e, porque não dizer amor. Disse que não pretendia, mas que não via culpados. Disse ao Oi, vá, volte, me visite. Ouvia-se o burburinho para todos os lados. Pois bem, naquele dia, todo são resolvera espalhar Ois pelo mundo. Decidiu descomplicar todas as visões, decidiu que não seria orgulhoso com si próprio, ou não faria o mundo todo aos seus pés. Pois então, do menos inferiorizado era o mais infeliz, embora o fingimento estivesse logo atrás do espelho. Aliás, questionava o que estava atrás e o que vinha à frente. Deu-lhe um beijo no espelho, um salto, foi simpático por si, escreveu o orgulho no papel e o jogou pela janela até ver adiante no ladrilho. Assouviou e balançou a cabeça feliz para o padeiro. Respirou fundo como não fazia questão há tempos, deixou de escurecer a vida por obrigação e foi ser feliz. Foi perguntar se estava tudo bem com as pessoas. Aquilo o completava, sem ser absolutamente e, por tudo, necessário. Mas preferia não ser vazio. Cansei da convardia humana. Não suporto mais. Abdico de todos esses em minha vida. Cansado, mundo, cansado da covardia alheia. E todos foram felizes, talvez até para sempre. Semeia esse sorriso antes desinteressado. Semeia para sempre. Talvez, e até. Para Sempre.

Fantasmas Felinos

Contava que, naquela época, gostava de caminhar a observar a grande represa. Era água a maré, água inimaginável, parecia mar. Não tinha ares de mar, mas tinha vista tal como a que ele proporcionava. Encontrava os como ela, que caminhavam ou corriam. Encontrava com pedreiros que construiam quiosques. Encontrava com as tentativas de formar ali um jardim botânico, para obstruir a linda vista maritima como lindas (ou não tão lindas) árvores. Curiosamente, em certo ponto, encontrava com gatos. Muitos gatos. Gatos demais. Gatos daqui, gatos pra lá, gatos acolá, gatos ali. E os gatos se misturavam com as capivaras. É de se imaginar que a Senhorinha Dona daquela casa era por demais sólida, sofria de mania de gatos, pois logo se via que tinha muitos gatos. Eram gatos negros, gatos mesclados, gatos parecidos com os de antigos amores, gatos brancos, gatos de todos os tipos. Eram tanto os gatos que começou a intrigá-la. Pensava que além disso a Senhorinha era fria por demais, por acontecer de deixar tantos gatos por ali, perdidos na vida e da vida, a olharem a paisana, sem comida certa, com muito sol, sem expectativas, sem dia seguinte. Pois gato haveria de querer ser gente na vida? Com certeza sim, quem não almejava pelo sol do dia amanhã? O gato talvez não quisesse tanto assim o sol. Por vezes devia apenas querer um dia nublado, mas poderia apostar que sonhava com o dia. Com o próximo dia, a próxima noite, a próxima refeição. E quem dirá que essa viria? E lá estava um gato imponente, que não se afetava com a dita situação, não se incomodava com a falta de comida e, caso se incomodasse, não pareceria se incomodar. Pois bem, encarou-o. Estava estático como estátua, intrínseco e tal como um tetânico que não sai do lugar. Nem ligou para seu olhar intimidador. Afetou sua alma, balançou a auto-estima, mexeu com algo de dentro. Cambaleou as pernas, se sentiu ofendida pelo encarar duro e comprou a briga pessoal do gato que a fez sentir mal. Olhou uma última vez, e lá estava a estátua felina. Branca com manchas claras e esverdeadas. A verdade é que o gato não se afetava com ela. Nem mesmo o gato. Resolveu que iria chamá-lo de um gato. E saiu logo dali, fugindo de todos os seus fantasmas.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A fome das lembranças

Lembrou-se de quando era criança e apossava tudo o quanto podia na bolsa dada pela madrinha. Era uma bolsa cor-de-rosa, média, com um laço enorme bem característico. E por tudo quanto passava incluía em si. Incluía para si. Aquele sentimento de posse e de tudo certeiro em volta diagnosticava como que para sempre o que poderia ser externalizado. E, agora, se via ali. Aguardando reações, outros, destinos, mortes. A sua. Recusava o pensamento de que deveria, em algum momento, se apossar desses também. O que lhe era externo também era seu, mas, a partir do momento que se tornava seu, não lhe era mais externo. As coisas, na verdade, lhe pareciam muito mais bonitas quando encaradas de dentro para fora. De fora para dentro nunca pareciam tão vistosas e, por vezes, e quantas vezes na vida, chegou a doer e atingir pontos tão acertados da alma. Mesmo quando a alma estava vazia e diziam vozes intuitivas de que as coisas haviam de melhorar, não cessavam nunca os tiros que raspavam daqui e de lá e que faziam doer, dorzinha, dorzinha de fundo, na música que se escuta, nas memórias abafadas. Era isso que tinha para ver ainda, o abafado. Fitou o guarda-roupa de madeira envelhecida, escura, com riscos claros e dispersos em seu comprimento todo. Parecia mágico, o condão que libertaria tudo que tinha dentro. Olhou o tapete desbotado de vida, e em cada desbote conseguia ver a lembrança na matéria, toda ali, eternalizada. E quão queria eternalizar o edílico? Quem se interessaria pela vida alheia? Quem entenderia o paradisíaco dos objetos? Quem doaria parte de si por preservar aquele monte de tralhas? Pois sim, sua vida tinha virado aquele monte de tralhas. E a janela logo ali ao lado era a porta para o que vinha depois. Haveria de ser. No que se apegaria? Na luz? Haveria de ter luz? Se todos pintam e contam empolgados sobre a escuridão que vem...Sobre as vozes que cessam. Se todos preveem com orgulho uma cena de medo, um filme de terror em que se esquece de viver. Quem saberá o que será a morte enfim, a tempo de se apossar de tudo. Antes esquecer o que tiverá em vida. Vozinha diz que não. Vozinha não prevê o fim tão fim. O barranco despanca logo ali. Vozinha diz: A posse! Lembra a posse! Joga-te do barranco, agarra a posse, aquela mesma posse! Resolveu então trancar o velho armário para sempre. Agarrou tudo que era seu, desesperadamente atrás da tal posse. Jogou tudo dentro daquela bolsa cor-de-rosa que fomentava o processo. Se esqueceu do a seguir e em segundos tudo já era tão mais seu que daquele guarda-roupa cheio e trancado. O guarda-roupa tinha objetos.Aquele monstro traduzido. Ela tinha a bolsa em si. Na memória. Ela era a bolsa e levava consigo todas as lembranças do mundo. Para onde fosse, e para sempre, em um ímpeto eterno de caretas e sorrisos de momentos esquecíveis, porém, eternos naquela escuridão do sem fim.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ser ou não ser da questão Doméstica

Tum, tum, tum, roda gira, gira roda, pedra aqui, mato acolá. A conversa viria animada, ela olhava adiante, logo na janela do carro. Fitava a vegetação por qual passavam, sem perspectiva alguma e de cabeça vazia. O interior adentrava e ficava mais quente. A conversa, de fato, encalorava, se embrulhava e tal quanto calorosa como o suor de corpos ofegantes em abraços saudosos. Pois bem, chamou-lhe logo a atenção o teor que seguia, e ralhou a colocar-se atenta. "Mas Dona, olha bem pra isso, seiscentos reais! Seis quilogramas por seiscentos reais!". Colina, colina, pinheiro. "Meu filho, preste atenção nisso, dia das mães é logo mais, deixe de ser besta!". Amarelo, azul. "Mas precisa ver, Dona, precisa ver como lava! O dono da loja me contou tudo, disse que não vai ter promoção igual essa não. Diz que não gasta nadinha de nada, Dona, que nem usar sabão ela usa!" Verde. "Careça, menino, e você lá precisa de lavadora? Tá igual a vizinha da frente de casa, comprou uma de doze quilos, trabalha que é uma beleza e a embestada desata a lavar roupa. Imagine só se não devia jogar tudo lá dentro. E sabe que me dizem que isso mancha a roupa, mas a lá de casa não." Pinheiro. Vaca. "Como que mancha, Dona, se a despiroca trabalha a valer?". Carro. Nuvem. Carro, nuvem, placa. "E diga lá, ouvi dizeres que quanto mais velha, melhor trabalha. E me diz pra que gastar todo esse recurso com essas modernidades, meu filho? Há de enriquecer comprando tudo que for útil e antigo. Na casa que eu trabalho a máquina é velha, mas faz serviço. Sempre dá enrrosco, o moço que vai fazer o conserto já disse que qualquer dia não dá jeito, mas ele quer é comprar aquela máquina. Avisei a Dona da casa, já disse que o malandro não acha igual". Silêncio. Silêncio. Quietude. Pinheiro. Pedra. Cabeça bate no teto e o barulho é ignorado. "Mas Dona, sabe que é mesmo verdade, dia das mães é Domingo, vou dar uma procurada lá no centro, devo achar mais barata. Às vezes de até 8 quilos! A senhora tá é certa!" Amarelo forte. "Pois é, quando eu digo, é experiência, meu filho, deixa a gente esperto com as coisas da vida". Quietude. Ímpetos demasiadamente confortantes, como quem chega cansado e tira o sapato, e assiste ao filme em sofá de casa, ou quem dorme no frio em edredons. Coisas da vida.

Borboleta

Olhava para cima e imaginava alma aos ventos, subindo de si para as direções, coordenadas, diversas, diversos, sentidos, sentia. Sentia. Podia mesmo sentir a alma indo embora e murmurava um adeus de choro impresso dentro, suplicante por entre os dentes, escorrendo por entre as diversas e milhares de almas e facetas de sua personalidade. Que se iam. Que deixavam. Que se foram, com aquela tal volatidade das coisas. Era branca a alma, era tudo branco. E via. E sentia aquele chorar baixinho e preso, na gaiola da laringe em edema, do edemaciado pessoal, e de edemas recorrentes. Canção, cante agora. Toca na sua vez de tocar, leve consigo a melodia serena e tudo aquilo que com ela se deve levar. Leve a alma lá para cima e bem junto do Senhor. Implorava com os olhos fumegantes e sem sentido. Fitava o escuro do teto e o céu logo acima com certos pedidos embutidos. Não sabia do céu, do azul ou do preto, não sabia do negrezar que vinha depois, sabia do branco. Ô, alma, corre branca, mas abranda. E vai devagar. Vai, lentifica, porque as incertezas traduzem ainda um hesitar perene. E diz-se ainda implorar um desejo na valsa dos brancos de cenário negro, na dança do escuro com pés vestidos em claro, com contrastes de corações em paz. Pedia e suplicava e implorava e olhava com o brilho dos olhos: olhava para a claridão. Pedia ao Senhor para ser borboleta. Dizia que queria as asas. Queria asas. Queria bolas coloridas. Precisava do colorir, da janela bonita, da paisagem verde, das tecnologias enterradas. Só queria ser borboleta. Borboleta longe do sol, longe das almas e perto da alma. Queria ser borboleta, do Senhor, Senhor. As asas. Coloridas. Cirandas. Queria uma ciranda de crianças no concreto pintado de amarelinha e quatro-cantos, queria uma cantina logo ao lado e o chão de ladrilhos vermelho. Queria a mancha do geladinho rosa que a menina não pagou. Queria a missa na Igreja bonita, enfeitada para todo dia. Queria uma sala de artes, com guache. Apreciava ser criada e colorida por crianças, por todas as mãos e todas as cores. Queria uma parte delas para si e a infância. Pedacinho da ciranda que roda. Era vidro e se quebrou. E vazou. Os pincéis se misturaram e, com eles, todas as cores do mundo. Vamos dar a meia volta. Borboleta voou. Feliz. E voou.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Chuva de refrigerante

As pérolas, o escorregar escada abaixo, o travesseiro no ar, os sorrisos alheios, o pular, o gritar, o livre dos braços, o movimento leve, o cantar extravasado, os cristais reluzindo, o bizarro, os porcos cor-de-rosa, as luzes muito bem iluminando, as funções tidas como boas e fáceis, a convivência gostosa, o futebol, a comemoração, a bola, a torcida, o gol, a corrida em pista dura, o medo de cair, a tinta vermelha, o morcego na quadra, as almofadas grandes, a televisão recém instalada, a dança esquisita, a crise de riso, a vela acesa, a fogueira, o violão, o canto conjunto, a noite não dormida, a noite conversada, a noite tocada, os sorrisos no silêncio, os movimentos calculadamente silenciosos, a contenção mais extravasada, o braço dado, o correr junto, o junto ofegante, o céu de estrelas, o ver de estrelas conjuntas, o ver conjunto, o livre e junto escutar, o ouvir de declarações, o rir delas, os cartazes coloridos, as feiras, a criatividade, o geladinho azul, o picolé de chiclete, a figurinha do álbum, o cheiro de banca de jornal, a canetinha, o giz de cera esquecido, a cola bastão, a cartolina vermelha, as jujubas de todas as cores, a música da banda nova, a capinha decorada do cd, o peixe no aquário, a psicina povoada, o biquini emprestado, a calça sem bainha, a moda listrada, os macaquinhos e as zebrinhas, os ônibus de excursão, os recém conhecidos, a festa de quinze anos, todas as valsas da vida, o abajur francês quebrado, o perfume francês roubado, o perfume venezuelano exaltado, as princesas, os príncipes, os casamentos reais, a nostalgia, os palácios, as roupas, as nostalgias, os doces, a nostalgia, o deja vu, a estante de bolos verdes. E tudo que é verde. E tudo que se faz colorido. E toda felicidade reina no canto. E logo ao lado. No cenário, chove a chuva de pressão de garrafa aberta. Chove a chuva fina e gostosa. Chove a chuva melada que une a todos. Chove refrigerante. Um brinde a tudo isso e a todo o resto.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Rio de janeiro

*E creio não conseguir me colocar sobre a tragédia que aconteceu hoje no Rio. Isso porque, literalmente e de uma vez por todas, me deixou sem palavras. Rosas e sentimentos mentais para os que foram e os que esperam, no constante luto e eterna esperanças de um povo forte e enraizado. Todos os dias esse vai e vem, e a vida se repete na estação. Faça valer, mas nada vale vidas. Meus mais sinceros sentimentos e amor.*

Dorzinha

Tinha aquela dose de pressentimento, percebe? Aquela coisa do fundo da alma que cotuca. E cotuca...Aquela consonância de coisas não ditas, que já deixaram de magoar há tempos e que ofuscam tanto o sentimento. Uma coisa infantilizada, até, um soar profundo e preso, enclausurado. Sabe? Sabe do medo de perder o sentimento? Conhece aquele medo de deixar de ser sentimental? E partir dessa para onde, para a onda, para a vida. E, principalmente, para o que não se conhece. Entende quando as lágrimas alheias vão e voltam dentro da gente, quando o fluxo carrega e descarrega e quando se pára para pensar? Que de tantos fatos escreveria três vezes, mas que de tão relacionados se escreve uma. Nota. Nota e percebe e sente que a prole do que vem depois acabou, e então o que virá? A prole acabou. Acabou a renca de dor, a raiz de dor. E porque a raiz da dor se doa para a de felicidade, e raios de felicidade se voltam para a dor? Falo da dorzinha de aurora, a dorzinha escondida, ê dorzinha complicada e triste e viva e dolorida. E duvidosa. Aprende-se aos poucos que cada dor é dor, e que o outro de fato a sente. Ainda que seja a dorzinha do fundo do espírito. E vê se compreende, que até dor de amor é dorzinha. Que se perde quando se esgota, mas, sobretudo, se faz perder. Que a decisão é dura feito pedra e diamante incrustado, e que incrusta na pele e se faz valer. Ou não. Pensando bem, olhando profundamente ao dentro. Observe e vide e veja. E ouça o barulhar do fora, os barulhos das madrugadas, tão bonitos para serem ditos morcegos e grilos e cigarras. Mais bonito seriam morceguinhos, grilinhos e cigarrinhas. A noite se impõe negra, mas é clara. Não tão clara como a dorzinha verde que assola o ladinho, o cantinho, o coração. Coraçãozão, de papel, de viés, de júri. Tema todas as responsabilidades, entretanto, saiba que não são todas suas. Afinal, o mundo todo, por vezes tolo, não é responsabilidade de ninguém, mas é responsabilidade de todos. Perder um pouco da responsabilidade sobre si, e deixar de pensar. O mundo exige dos quais se doam em sentimento e pede compaixão, e quando se dá compaixão e sentimento pede toda a seriedade. As pessoas pedem seriedade. E a amnésia assola toda a terra. Uma amnésia sentimental generalizada assola a terra. Há uma epidemia que quebrou todos os laços e promessas de vida. Dorzinha verde, apaziguar-se-irá. Desejo a você todos os votos de paz. E vá. Amasse, faça doer, mas vá. E quando for, deixa só a noite no fundo. Escura, mas clara. Para iluminar todas as vidas sob sua proteção.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Água Viva

Mostrava-se em paz do carma em auge indiano, com sua camiseta branca em atrito com seu corpo, a calça folgada nas pernas, confortável. Os pés descalços. A alma descalça de motivos. Os olhos amendoados intrigados. Uma colher de doce na boca. Segurava a colher firmemente e a pressionava contra seus dentes. E no meio do nada, encontrou a inquietude. Foi até a janela. Recostou-se no parapeito. Olhou o que estava fora e o que não sabia se podia ser chamado de paisagem. E não sabia porque estava inquieta. Do outro lado do mundo, lá estava, e sentia como se pudesse ouvir o choro baixo. Sentia como se sua paz estivesse sendo tomada em cenas observadas pela janela em que nada mais acontecia do que o mais simples de qualquer cotidiano. E o diário passava rapidamente pela noite dos olhos. E o corpo era tomado por espíritos angustiados, e confusos e felizes. As flores lhe saltavam aos olhos, e o pólen virava lágrimas. E chorava forte, e chorava mais. E as águas transbordavam em conssonância do mar que a tomava. Mar mais heterogêneo, dolorido. Alívio. A humanidade pedia o alívio prometido aos bons. Todos eram bons. Era um vômito cego. Era um vômito de lágrimas que transbordava. Era uma bola de gelo que prendia a garganta. E a bola esquentava e queimava. E a bola dava a vontade de gritar alto. E a bola fazia libertar no choro explícito. E as amendoas semi-cerradas ouviam o movimentar, a correria, a água, as lágrimas. A paisagem foi vista se transformando. A conformação foi tomando lugar. As pessoas corriam. Todos os seres se esquivavam. Ela estava parada. Ela parou por aquele instante de segundo. Ela estava chocada pela não continuidade dos fatos. Chocou. Chocou mais. Quebrou. Lacrimejou. Não reagiu. Não se moveu. O chão de todos tremeu. O chão de um povo tremeu. Um prédio logo em frente caiu. Os alicerces despencaram traços fundamentais de uma cultura. E ela assistiu a tudo de um camarote inundado. Ela se viu no meio de suas posses perdidas e de seu ser invadido. Seu carma de paz caiu junto a tudo. Todas as bolas de neve saíram do foco de todos os problemas e tudo se traduziu a um assistir doloroso e conformado de vida caindo por terra. A dor conformada. A morte conformada. A inconformação de um segundo. A água viva tomando vidas para si. Um afogar lento, tranquilo. A colher caiu entre gotas coloridas. Os melhores votos da humanidade para todas as almas da vida em destruição, de água, de morte, e de vida. Os melhores votos de vidas pela vida. Por todas as cores do universo.

*Dedicação de votos de paz para todas as vítimas diretas e indiretas dos recentes acidentes no Japão.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Queda livre

E porque ainda não tinha reparado nos momentos de elevador, na vida? Porque foi preciso de tão evidente contraste para, ao fim, notar a diferença do tempo do elevador? E como as pessoas podem viver em casas? Quer dizer, é óbvio que elas podem viver em casas, mas aonde fica o tempo do elevador? E em um tempo em que foi feliz, de bem com a vida e, sem grandes problemas, por assim dizer, notou que morava no décimo sexto andar. Ou seja, passava grande parte do dia no elevador, considerando a sacralidade dos segundos. E passava. E lá era possível respirar em um ambiente a parte, sem moléculas que a ciência condena, sem o cosmos de fofoca e de vida alheia, e, diria mais, mundo alheio a todas as coisas. E parou para pensar no quão precioso era o tempo do elevador. Entende? Organização pessoal. Questão de organização pessoal, decidir o que fazer no dia, na semana, no mês ou da vida. Era aquele tempinho de elevador, tão precioso, que, após o tempo feliz, compactou-se em uma versão minimalista, compacta e imprópria. Insuficiente para o respirar profundo ou para quaisquer tipos de conversa sobre o tempo, ou divagações sobre cheiro de chuva e ventinho que bate enquanto se espera o tão estimado meio de transporte. Seguro, sim. Muito seguro. O mais seguro. Ele guarda segredos e pensamentos profundos. Os Gregos deviam morar em elevadores, a propósito. Pois bem, os dezesseis andares viraram abruptamente horrendos seis andares. O número mais sem graça e mais sem vida. Mais breve e sem gosto. Sem respirar. E, de repente, não encontrava mais suspiros, não encontrava mais divagações. Encontrava-se apenas, diariamente, durante seis andares, com a vida cotidiana corrida e com constantes tapas na cara que ansiavam e gritavam asperamente implorando por segundos de vida e por velocidade maior. Sim, aqueles tapas na cara rogavam por vida, mas por queda livre. E não era a queda da liberdade, era mais a queda da prisão eterna do ciclo vicioso. Um dia ou outro, algo engraçado ou não. Não fazia mais diferença. Até ali nada era especial. E agora...agora que se mudou para o décimo primeiro andar, conseguia entender. Foi só entrar no elevador para sentir aquele nó que ansiava mais velocidade e que reclamava de um elevador tão lento, que atingia objetivos de modo tão medíocre e demorado. Pensava na perda de tempo e sentia como se fosse ter um gênero peculiar de ataque cardíaco, sentia uma explosão interna. E, por fim, veio a fase de conformação, em um estilo recostar-se: Recostou-se na parede, apoiou-se ali, e respirou. Como há muito tempo não respirava. E como há muito tempo não respirava profundamente em um elevador. Foi empiirista. E ,então, naquele momento, entendeu a tamanha falta de andares que estava a ser suprida. O tamanho alívio de pensar novamente em um espaço. E tamanha foi a felicidade que abraçou aquele espaço coletivo como seu. Abraçou forte, usou de todas as forças. Poderia apertar todos os botões, de tanta felicidade, de tanta vontade de recuperar o tempo perdido. E se deu conta de que podia dormir ali, recostado. Podia se sentir confortável naquela luz baixa e reconfortante, naquela luz que era amiga e no teto cruzado que ouvia desabafos mil. Entraram pessoas, parentes, amigos. Falaram-lhe palavras. Fitava o teto. Não respondia. Exigiam respostas. Não falava. Citavam quedas livres. Deliciava-se naquele silêncio de propriedade e, por direito, seu. Apenas seu. E seguia a tendência e a filosofia do silêncio. A fim de apropriar-se de sua descoberta vital, seguia apenas uma direção. A inércia. A inércia das palavras.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Cachimbo de ouro

Deu uma longa tragada no velho cachimbo marrom. E velho. O cachimbo era velho e velho ele estava. Digo, muito gasto pelos anos. Deveras, muito gasto. Sua vida já assumia aqueles tons marrons e verdes musgos. Sua cadeira já era daquela madeira escura e o estofado era do nude mais avermelhado. Ele cruzava as pernas e inclinava-se para frente, apoiando o cotovelo direito pesadamente sobre o joelho esquerdo, já tão fraco. Olhava para cima. Mas a cabeça continuava fixa. A cabeça não ousava mexer. O que se movia era unicamente o olhar. Não digo puramente o olhar porque o olhar não tinha nada de puro. Era olhar pesado, eram olhos cerradíssimos, era até doloroso e de dor estava até. Mas não puro. Os olhos se moviam até com certa agilidade perto do ágil que atingia nos últimos anos. Fungou. Tragou novamente. Pensou no velho papagaio que estava no quintal, pensou em ir até a cadeira de balanço para se distrair, mas sentiu preguiça. Sentiu fadiga. Espreguiçou-se ao seu modo, muito lentamente, enquanto pensava nas histórias de Natal que ainda recordava da infância. Pensou na vitrola de verniz vermelho e bocais dourados, pensou no disco de vinil, quão imponente era e teve saudade de ouvir música. A música que faz chorar, que desperta sentimento. Não que ele chorasse, pois era duro. Muito duro. Mas pensou por pensar, divagou, olhou para lareira, ouviu a música de um fogo fictício que atiçava sua alma para frente, para passos e caminhadas, para sons e para um silêncio duro e profundo. Duro e profundo, e essas palavras ecoavam em sua mente. Duro e profundo como ele. Tragou novamente. Sentiu o coração queimar. Levantou-se. Fez a madeira do chão estalar, fez as janelas de vidro serem vistas, fez as tantas árvores lá de fora serem apreciadas e chegou na cozinha. E olhou para os armários embutidos em branco. E olhou a ordem estabelecida. A toalha florida e limpa. O cinzeiro de prata com um cavalo estampado. O vaso de argila com flores artificiais fincadas. Os talheres de madeira escura e pregos dourados. O telefone a rodar. Olhou para aquela mesa. E olhou. E fez ser visto o jarro. E olhou para a pia. Fez ser visto o filtro de barro. Olhou para a mesa. E viu. Viu o cesto de pão, aquele que cabia apenas um único pão. Aquele que estava coberto com um guardanapo de papel todo pintado de frutas, de banana, de maçã e de pêra. Viu o cesto. Vazio. E sentou no banco de madeira de quatro pés, todo riscado pelo tempo e pelas mãos de alheios amigos, conhecidos, inimagináveis. Riscado por histórias. Riscado por amor.
Riscado pelo amor. Soltou um ruído baixo e um tanto quanto inconsolável. Repousou seu chachimbo no cinzeiro limpo e soube que o limpo logo estaria sujo para sempre. Olhou o cesto. E chorou.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Inveja Boa

De rede na varanda, de correr atrás de barata, de apagar a luz, de pular na cama, de dar beijo estalado no rosto, de dar abraço gostoso, do cinzeiro lá de casa, do cigarro do avô, do tempero baiano, da comida dita boa, dos espaços em branco da mente, da correria cotidiana, de quem tem tempo mole, mas de quem para tudo tem tempo certo, do tempo que é errado, da vida que está certa, do tempo que é certo, do tempo que está certo, de tudo que fluí, do cachorro do Romero Brito, dos espelhos que tudo vêm, dos olhos que podem ver tudo, da cadeira lá parada, do vaso em cima da mesa de centro, das almofadas em repouso, da inércia, da cinética, da garrafa vazia de coca cola, da sacola cheia de presentes, do livro ainda não lido, da pessoa ainda intocada, da caveira surpreendida e estática, do candelabro rubro, da tomada rústica, de tons modernos, de falas compridas, da prolixidade de uma vida, da fala, da linguagem, do tio rico, do primo pobre, do passarinho, do brigadeiro na Itália, da toalha cheirando a sabonete muito fresco, do chale no pescoço da madame, das folhas de um coqueiro do qual bebo o coco, das orelhas compridas do moço, da bolsa aberta na mesa, do peixe no aquário redondo, do azulejo um pouco manchado, da cama arrumada, do nostálgico todo empoeirado e do morto. E do vivo.

terça-feira, 1 de março de 2011

Por tudo o que é sereno

Por tudo que se diz sereno, me dedico a humildade. Por tudo que é sereno, dedico ao mundo a paz de espírito, o olhar fixo na parede branca, a vida em recomeços pausados e a dor tão poupada! Falarei de papel em branco e de caneta nova, e de cheiro de terra molhada, livro novo, avô e de avó e tempero gostoso. E falarei do vento da janela da sacada. Por tudo que se diz sereno, falo-te em amar e viver ao mesmo tempo, ainda que ninguém saiba ao certo se isso é possível. Por tudo que é sereno, recomendo o grito. Convido a se jogar. Peço um cobertor. Falo com ursos de pelúcia. Abraço o mundo. E suplico pelo respirar mais fundo, ainda, essa, a melhor parte de ser sereno.
Estar sereno entre todas as estrelas do mundo.