sexta-feira, 11 de março de 2011

Água Viva

Mostrava-se em paz do carma em auge indiano, com sua camiseta branca em atrito com seu corpo, a calça folgada nas pernas, confortável. Os pés descalços. A alma descalça de motivos. Os olhos amendoados intrigados. Uma colher de doce na boca. Segurava a colher firmemente e a pressionava contra seus dentes. E no meio do nada, encontrou a inquietude. Foi até a janela. Recostou-se no parapeito. Olhou o que estava fora e o que não sabia se podia ser chamado de paisagem. E não sabia porque estava inquieta. Do outro lado do mundo, lá estava, e sentia como se pudesse ouvir o choro baixo. Sentia como se sua paz estivesse sendo tomada em cenas observadas pela janela em que nada mais acontecia do que o mais simples de qualquer cotidiano. E o diário passava rapidamente pela noite dos olhos. E o corpo era tomado por espíritos angustiados, e confusos e felizes. As flores lhe saltavam aos olhos, e o pólen virava lágrimas. E chorava forte, e chorava mais. E as águas transbordavam em conssonância do mar que a tomava. Mar mais heterogêneo, dolorido. Alívio. A humanidade pedia o alívio prometido aos bons. Todos eram bons. Era um vômito cego. Era um vômito de lágrimas que transbordava. Era uma bola de gelo que prendia a garganta. E a bola esquentava e queimava. E a bola dava a vontade de gritar alto. E a bola fazia libertar no choro explícito. E as amendoas semi-cerradas ouviam o movimentar, a correria, a água, as lágrimas. A paisagem foi vista se transformando. A conformação foi tomando lugar. As pessoas corriam. Todos os seres se esquivavam. Ela estava parada. Ela parou por aquele instante de segundo. Ela estava chocada pela não continuidade dos fatos. Chocou. Chocou mais. Quebrou. Lacrimejou. Não reagiu. Não se moveu. O chão de todos tremeu. O chão de um povo tremeu. Um prédio logo em frente caiu. Os alicerces despencaram traços fundamentais de uma cultura. E ela assistiu a tudo de um camarote inundado. Ela se viu no meio de suas posses perdidas e de seu ser invadido. Seu carma de paz caiu junto a tudo. Todas as bolas de neve saíram do foco de todos os problemas e tudo se traduziu a um assistir doloroso e conformado de vida caindo por terra. A dor conformada. A morte conformada. A inconformação de um segundo. A água viva tomando vidas para si. Um afogar lento, tranquilo. A colher caiu entre gotas coloridas. Os melhores votos da humanidade para todas as almas da vida em destruição, de água, de morte, e de vida. Os melhores votos de vidas pela vida. Por todas as cores do universo.

*Dedicação de votos de paz para todas as vítimas diretas e indiretas dos recentes acidentes no Japão.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Queda livre

E porque ainda não tinha reparado nos momentos de elevador, na vida? Porque foi preciso de tão evidente contraste para, ao fim, notar a diferença do tempo do elevador? E como as pessoas podem viver em casas? Quer dizer, é óbvio que elas podem viver em casas, mas aonde fica o tempo do elevador? E em um tempo em que foi feliz, de bem com a vida e, sem grandes problemas, por assim dizer, notou que morava no décimo sexto andar. Ou seja, passava grande parte do dia no elevador, considerando a sacralidade dos segundos. E passava. E lá era possível respirar em um ambiente a parte, sem moléculas que a ciência condena, sem o cosmos de fofoca e de vida alheia, e, diria mais, mundo alheio a todas as coisas. E parou para pensar no quão precioso era o tempo do elevador. Entende? Organização pessoal. Questão de organização pessoal, decidir o que fazer no dia, na semana, no mês ou da vida. Era aquele tempinho de elevador, tão precioso, que, após o tempo feliz, compactou-se em uma versão minimalista, compacta e imprópria. Insuficiente para o respirar profundo ou para quaisquer tipos de conversa sobre o tempo, ou divagações sobre cheiro de chuva e ventinho que bate enquanto se espera o tão estimado meio de transporte. Seguro, sim. Muito seguro. O mais seguro. Ele guarda segredos e pensamentos profundos. Os Gregos deviam morar em elevadores, a propósito. Pois bem, os dezesseis andares viraram abruptamente horrendos seis andares. O número mais sem graça e mais sem vida. Mais breve e sem gosto. Sem respirar. E, de repente, não encontrava mais suspiros, não encontrava mais divagações. Encontrava-se apenas, diariamente, durante seis andares, com a vida cotidiana corrida e com constantes tapas na cara que ansiavam e gritavam asperamente implorando por segundos de vida e por velocidade maior. Sim, aqueles tapas na cara rogavam por vida, mas por queda livre. E não era a queda da liberdade, era mais a queda da prisão eterna do ciclo vicioso. Um dia ou outro, algo engraçado ou não. Não fazia mais diferença. Até ali nada era especial. E agora...agora que se mudou para o décimo primeiro andar, conseguia entender. Foi só entrar no elevador para sentir aquele nó que ansiava mais velocidade e que reclamava de um elevador tão lento, que atingia objetivos de modo tão medíocre e demorado. Pensava na perda de tempo e sentia como se fosse ter um gênero peculiar de ataque cardíaco, sentia uma explosão interna. E, por fim, veio a fase de conformação, em um estilo recostar-se: Recostou-se na parede, apoiou-se ali, e respirou. Como há muito tempo não respirava. E como há muito tempo não respirava profundamente em um elevador. Foi empiirista. E ,então, naquele momento, entendeu a tamanha falta de andares que estava a ser suprida. O tamanho alívio de pensar novamente em um espaço. E tamanha foi a felicidade que abraçou aquele espaço coletivo como seu. Abraçou forte, usou de todas as forças. Poderia apertar todos os botões, de tanta felicidade, de tanta vontade de recuperar o tempo perdido. E se deu conta de que podia dormir ali, recostado. Podia se sentir confortável naquela luz baixa e reconfortante, naquela luz que era amiga e no teto cruzado que ouvia desabafos mil. Entraram pessoas, parentes, amigos. Falaram-lhe palavras. Fitava o teto. Não respondia. Exigiam respostas. Não falava. Citavam quedas livres. Deliciava-se naquele silêncio de propriedade e, por direito, seu. Apenas seu. E seguia a tendência e a filosofia do silêncio. A fim de apropriar-se de sua descoberta vital, seguia apenas uma direção. A inércia. A inércia das palavras.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Cachimbo de ouro

Deu uma longa tragada no velho cachimbo marrom. E velho. O cachimbo era velho e velho ele estava. Digo, muito gasto pelos anos. Deveras, muito gasto. Sua vida já assumia aqueles tons marrons e verdes musgos. Sua cadeira já era daquela madeira escura e o estofado era do nude mais avermelhado. Ele cruzava as pernas e inclinava-se para frente, apoiando o cotovelo direito pesadamente sobre o joelho esquerdo, já tão fraco. Olhava para cima. Mas a cabeça continuava fixa. A cabeça não ousava mexer. O que se movia era unicamente o olhar. Não digo puramente o olhar porque o olhar não tinha nada de puro. Era olhar pesado, eram olhos cerradíssimos, era até doloroso e de dor estava até. Mas não puro. Os olhos se moviam até com certa agilidade perto do ágil que atingia nos últimos anos. Fungou. Tragou novamente. Pensou no velho papagaio que estava no quintal, pensou em ir até a cadeira de balanço para se distrair, mas sentiu preguiça. Sentiu fadiga. Espreguiçou-se ao seu modo, muito lentamente, enquanto pensava nas histórias de Natal que ainda recordava da infância. Pensou na vitrola de verniz vermelho e bocais dourados, pensou no disco de vinil, quão imponente era e teve saudade de ouvir música. A música que faz chorar, que desperta sentimento. Não que ele chorasse, pois era duro. Muito duro. Mas pensou por pensar, divagou, olhou para lareira, ouviu a música de um fogo fictício que atiçava sua alma para frente, para passos e caminhadas, para sons e para um silêncio duro e profundo. Duro e profundo, e essas palavras ecoavam em sua mente. Duro e profundo como ele. Tragou novamente. Sentiu o coração queimar. Levantou-se. Fez a madeira do chão estalar, fez as janelas de vidro serem vistas, fez as tantas árvores lá de fora serem apreciadas e chegou na cozinha. E olhou para os armários embutidos em branco. E olhou a ordem estabelecida. A toalha florida e limpa. O cinzeiro de prata com um cavalo estampado. O vaso de argila com flores artificiais fincadas. Os talheres de madeira escura e pregos dourados. O telefone a rodar. Olhou para aquela mesa. E olhou. E fez ser visto o jarro. E olhou para a pia. Fez ser visto o filtro de barro. Olhou para a mesa. E viu. Viu o cesto de pão, aquele que cabia apenas um único pão. Aquele que estava coberto com um guardanapo de papel todo pintado de frutas, de banana, de maçã e de pêra. Viu o cesto. Vazio. E sentou no banco de madeira de quatro pés, todo riscado pelo tempo e pelas mãos de alheios amigos, conhecidos, inimagináveis. Riscado por histórias. Riscado por amor.
Riscado pelo amor. Soltou um ruído baixo e um tanto quanto inconsolável. Repousou seu chachimbo no cinzeiro limpo e soube que o limpo logo estaria sujo para sempre. Olhou o cesto. E chorou.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Inveja Boa

De rede na varanda, de correr atrás de barata, de apagar a luz, de pular na cama, de dar beijo estalado no rosto, de dar abraço gostoso, do cinzeiro lá de casa, do cigarro do avô, do tempero baiano, da comida dita boa, dos espaços em branco da mente, da correria cotidiana, de quem tem tempo mole, mas de quem para tudo tem tempo certo, do tempo que é errado, da vida que está certa, do tempo que é certo, do tempo que está certo, de tudo que fluí, do cachorro do Romero Brito, dos espelhos que tudo vêm, dos olhos que podem ver tudo, da cadeira lá parada, do vaso em cima da mesa de centro, das almofadas em repouso, da inércia, da cinética, da garrafa vazia de coca cola, da sacola cheia de presentes, do livro ainda não lido, da pessoa ainda intocada, da caveira surpreendida e estática, do candelabro rubro, da tomada rústica, de tons modernos, de falas compridas, da prolixidade de uma vida, da fala, da linguagem, do tio rico, do primo pobre, do passarinho, do brigadeiro na Itália, da toalha cheirando a sabonete muito fresco, do chale no pescoço da madame, das folhas de um coqueiro do qual bebo o coco, das orelhas compridas do moço, da bolsa aberta na mesa, do peixe no aquário redondo, do azulejo um pouco manchado, da cama arrumada, do nostálgico todo empoeirado e do morto. E do vivo.

terça-feira, 1 de março de 2011

Por tudo o que é sereno

Por tudo que se diz sereno, me dedico a humildade. Por tudo que é sereno, dedico ao mundo a paz de espírito, o olhar fixo na parede branca, a vida em recomeços pausados e a dor tão poupada! Falarei de papel em branco e de caneta nova, e de cheiro de terra molhada, livro novo, avô e de avó e tempero gostoso. E falarei do vento da janela da sacada. Por tudo que se diz sereno, falo-te em amar e viver ao mesmo tempo, ainda que ninguém saiba ao certo se isso é possível. Por tudo que é sereno, recomendo o grito. Convido a se jogar. Peço um cobertor. Falo com ursos de pelúcia. Abraço o mundo. E suplico pelo respirar mais fundo, ainda, essa, a melhor parte de ser sereno.
Estar sereno entre todas as estrelas do mundo.