sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ser ou não ser da questão Doméstica

Tum, tum, tum, roda gira, gira roda, pedra aqui, mato acolá. A conversa viria animada, ela olhava adiante, logo na janela do carro. Fitava a vegetação por qual passavam, sem perspectiva alguma e de cabeça vazia. O interior adentrava e ficava mais quente. A conversa, de fato, encalorava, se embrulhava e tal quanto calorosa como o suor de corpos ofegantes em abraços saudosos. Pois bem, chamou-lhe logo a atenção o teor que seguia, e ralhou a colocar-se atenta. "Mas Dona, olha bem pra isso, seiscentos reais! Seis quilogramas por seiscentos reais!". Colina, colina, pinheiro. "Meu filho, preste atenção nisso, dia das mães é logo mais, deixe de ser besta!". Amarelo, azul. "Mas precisa ver, Dona, precisa ver como lava! O dono da loja me contou tudo, disse que não vai ter promoção igual essa não. Diz que não gasta nadinha de nada, Dona, que nem usar sabão ela usa!" Verde. "Careça, menino, e você lá precisa de lavadora? Tá igual a vizinha da frente de casa, comprou uma de doze quilos, trabalha que é uma beleza e a embestada desata a lavar roupa. Imagine só se não devia jogar tudo lá dentro. E sabe que me dizem que isso mancha a roupa, mas a lá de casa não." Pinheiro. Vaca. "Como que mancha, Dona, se a despiroca trabalha a valer?". Carro. Nuvem. Carro, nuvem, placa. "E diga lá, ouvi dizeres que quanto mais velha, melhor trabalha. E me diz pra que gastar todo esse recurso com essas modernidades, meu filho? Há de enriquecer comprando tudo que for útil e antigo. Na casa que eu trabalho a máquina é velha, mas faz serviço. Sempre dá enrrosco, o moço que vai fazer o conserto já disse que qualquer dia não dá jeito, mas ele quer é comprar aquela máquina. Avisei a Dona da casa, já disse que o malandro não acha igual". Silêncio. Silêncio. Quietude. Pinheiro. Pedra. Cabeça bate no teto e o barulho é ignorado. "Mas Dona, sabe que é mesmo verdade, dia das mães é Domingo, vou dar uma procurada lá no centro, devo achar mais barata. Às vezes de até 8 quilos! A senhora tá é certa!" Amarelo forte. "Pois é, quando eu digo, é experiência, meu filho, deixa a gente esperto com as coisas da vida". Quietude. Ímpetos demasiadamente confortantes, como quem chega cansado e tira o sapato, e assiste ao filme em sofá de casa, ou quem dorme no frio em edredons. Coisas da vida.

Borboleta

Olhava para cima e imaginava alma aos ventos, subindo de si para as direções, coordenadas, diversas, diversos, sentidos, sentia. Sentia. Podia mesmo sentir a alma indo embora e murmurava um adeus de choro impresso dentro, suplicante por entre os dentes, escorrendo por entre as diversas e milhares de almas e facetas de sua personalidade. Que se iam. Que deixavam. Que se foram, com aquela tal volatidade das coisas. Era branca a alma, era tudo branco. E via. E sentia aquele chorar baixinho e preso, na gaiola da laringe em edema, do edemaciado pessoal, e de edemas recorrentes. Canção, cante agora. Toca na sua vez de tocar, leve consigo a melodia serena e tudo aquilo que com ela se deve levar. Leve a alma lá para cima e bem junto do Senhor. Implorava com os olhos fumegantes e sem sentido. Fitava o escuro do teto e o céu logo acima com certos pedidos embutidos. Não sabia do céu, do azul ou do preto, não sabia do negrezar que vinha depois, sabia do branco. Ô, alma, corre branca, mas abranda. E vai devagar. Vai, lentifica, porque as incertezas traduzem ainda um hesitar perene. E diz-se ainda implorar um desejo na valsa dos brancos de cenário negro, na dança do escuro com pés vestidos em claro, com contrastes de corações em paz. Pedia e suplicava e implorava e olhava com o brilho dos olhos: olhava para a claridão. Pedia ao Senhor para ser borboleta. Dizia que queria as asas. Queria asas. Queria bolas coloridas. Precisava do colorir, da janela bonita, da paisagem verde, das tecnologias enterradas. Só queria ser borboleta. Borboleta longe do sol, longe das almas e perto da alma. Queria ser borboleta, do Senhor, Senhor. As asas. Coloridas. Cirandas. Queria uma ciranda de crianças no concreto pintado de amarelinha e quatro-cantos, queria uma cantina logo ao lado e o chão de ladrilhos vermelho. Queria a mancha do geladinho rosa que a menina não pagou. Queria a missa na Igreja bonita, enfeitada para todo dia. Queria uma sala de artes, com guache. Apreciava ser criada e colorida por crianças, por todas as mãos e todas as cores. Queria uma parte delas para si e a infância. Pedacinho da ciranda que roda. Era vidro e se quebrou. E vazou. Os pincéis se misturaram e, com eles, todas as cores do mundo. Vamos dar a meia volta. Borboleta voou. Feliz. E voou.