terça-feira, 9 de agosto de 2011

Cavalheirinho

Arretadinho e encabulado espiava atrás do arbusto. Estava tão compenetrado que, ao som de sua mãe chamar, fazia que para cima e para baixo com a mão, como se a mandasse silenciar. Onde já se viu me mandar ficar quieta, menino, a mãe dizia. Ele não se ocupava, ainda que brevemente, em prestar atenção ou responder a repreensão de alguma forma pois sabia que dali a alguns instantes acabaria caindo nos braços do édipo e do calor materno. Mas ainda não. Agora era a hora de reconhecer o cenário, e estava muito entretido nessa função. Apertava os olhos como um míope quando tenta enxergar quilômetros a frente, se é que a intenção fosse mesmo enxergar alguns metros dali, ainda que meticulosamente, centímetros exatos. Falava alto consigo, repetia que era uma missão louvável e se equilibrava naquela posição cocórica que o fazia tremer ainda mais freneticamente que a ansiedade a qual era gerada naquele aspecto de situação. O espectro ia bem, o vitral estava parado a frente e tudo soava muito calmo. A Dona Maricota acabara de colocar as roupas no varal pendurado entre dois arbustos no quintal. O jardim da Dona Maricota era povoado de espécies vegetais ilustres, e a boa Senhora o deixava ajudar nos cuidados com o jardim. Pois sim, ele se sentia extremamente atraído por aquele jardim, de modo a fitá-lo o dia todo, ao que ruía risonha Dona Maricota e chiava orgulho aos ouvidos da mãe. Meu filho aprecia as coisas boas da vida. Meu filho enxerga a simplicidade, veja que menino sensível para os dias de hoje, e olhe se não será um cavalheiro, Dona Maricota! Será sim um cavalheiro, cantarolava Maricota, enquanto o observava com aquele olhar maternal e de apego, um olhar de quem viu a vida passar, se enfeliza e se entristece ao mesmo tempo com as pequenas alegrias juvenis. Mas haveria ele de tirar os olhos do jardim e colocá-los no alvo. O alvo, por si, não era alvo, o objetivo final daquela missão era o atingido. Para dizer-lhe, no calor da intimidade que temos aqui, a atingida: que a neta de Dona Maricota, o que era aquilo, Meu Deus? A menina não hesitava em perturbar a vida do pobre cavalheirinho, que a príncipio a viu como inofensiva. Então, desde que quando ainda muito criança o menino a puxou os cabelos, encasquetou ela com ele e passou a usar de mil artifícios para evitar a presença daquele. O pobre cavalheirinho não tinha chances e oportunidades lhe faltavam quando a tal estava por perto- Tão logo o via e se punha a reclamar: Vó, Emergaldo usa o estilete contra sua janela, Vóo, aquele peste pisou no meu pé e saiu correndo, Vóoo, viu aquilo, Ele e seu amigo acertaram a bola em seu jardim. Por Deus, menina, aquiete-se, dizia ele, e não bastava, era árduo e cansativo. E merecia vingança, era de opinião sustenida, Horácio, o amigo. De vingança iluminou-se o olhar do pobre garoto arrependido das épocas em que puxava o cabelo de Estefânia, quando viu Dona Maricota colocar o varal, naquela tarde. Pois há muito esperava por um dia como aquele, de sol, de tranquilidade. Estefânia estava dentro da casa, com certeza se pora a brincar de bonecas no quarto todo cor-de-anil que a Vó tinha feito a ela para quando a neta viesse visitar-lhe, semanalmente. Aliás, era invejável o quartinho, com papel de parede de rendas, cortina branca e o paraíso de brinquedos- o qual Emergaldo não podia frequentar, como já é notável. E sim, lá estava o modesto varal de fio de ferro enferrujado, no lindo jardim de dona Maricota. O menino se entrelaçava entre arbustos, ainda se equilibrando e sentindo a dormência dos pés, das pernas e no bum-bum. Que coisa, Dona Maricota demora a sair do quintal e, quando sai, Horácio se enrola a chegar. Menino enrolado, se punha a resmungar Emergaldo. Abortaria a missão logo menos, se enxergava incapaz de realizar o plano todo sozinho, afinal. Já tinha combinado tudo com Horácio na ligação que fizera a esse um pouco antes, contando das peripécias contidas no varal daquela tarde. O menino continuou a resmungar, a mãe de tempos em tempos lhe perguntava o porque tanto resmungava, afirmava ter feito bolo de laranja para o café da tarde e questionava a não-presença Horaciana. Esmergaldo se enciumava, como se Horácio ali fosse Rei, pois vê se pode. Mas continuava, ainda que com leves desvios, a focar o cenário e entreter-se em sua missão. Dali a pouco aparece Horácio, um tanto quanto esparfalhado, gritando Ois à toda vizinhança. Aquiete-se, injuízado, dizia Emergaldo, de voz abafada. Desculpa, cara, minha mãe me obrigou a fazer compras sob pena de abortar missão! Justificava-se o amigo. Pois se é assim, se apressa, enfático era o Quixote. O Sancho logo passou ao outro lado do jardim, sinalizando. A mãe observava inquieta da janela da cozinha, mas preferia não corromper o fluxo que era ilustre e divertido. A fazia bem observar os reflexos de sua cria. O menino olhou para o objeto em questão: roubariam a calcinha de Estefânia! E só havia de ser dela, cinza com rendinhas cor-de-rosa. Pois sim, de Dona Maricota é que não era, afinal. Logo que viu o tratante dejeto, tratou de avisar seu Sancho, que se mostrou alegre e disposto para execução do plano. E lá estavam os dois, acreditando na inocência relativa de seus atos. Foi rápido que veio o sinal maior por parte de Horácio. A pedra cruzou a visão, não vinha ninguém. Horácio mostrou de longe o estilingue e fez que sim com a cabeça, sorrindo. Emergaldo respirou fundo, fez sinal afirmativo, sorriu, prendeu a respiração e se colocou a correr pelo quintal de Dona Maricota, ao que Estefânia se colocou a gritar: Vó, a peste, está correndo no seu jardim, rápido, vó, venha ver. O que foi Esteffânia, estou lavando sua roupa, acalme-se que não tenho tempo para suas intrigas agora. Mas Vó, venha ver! Emergaldo corria desesperadamente mais, almejando a respiração e o tom vitorioso que, sabia, estava por vir. Horácio deu um salto e batia com os dedos, num espetáculo de ansiedade. Viu o amigo agarrar como se fosse sua a pequena calcinha cinza e rosa, e retornar em um meio-círculo ao que caiu na cerca de arame, na qual arranhou a perna demasiadamente branca em contraste com a bermurda marrom, a pulou e desceu barranco abaixo, esperando ansiosamente por Horácio, o qual corria logo atrás e às gargalhadas. Precisava ter visto a cara dela da janela, foi logo contar a avó. Dona Maricota saiu, viu varal e diz não sentir falta de nenhuma peça. Ainda deu uma piscadela para mim, veja só! Ria mais. Colocou a menina de castigo, Emergaldo, veja isso! Ria. Ria. Emergaldo estava ofegante, mas da respiração desesperada emergia a satisfação do dever cumprido. E então, que faremos com isso aqui? A que Horácio respondeu, vamos enterrar ou levar de troféu. Pois leve você de troféu, minha mãe há de me matar e devolver a Estefânia. Enterremos. E enterraram. Emergaldo colocou um meio sorriso no rosto, aquele de orgulho de homenzinho. Esboçou. A mãe notou algo de errado quando os meninos chegaram com os pés de lama em casa. Notou o sorriso. Ao fundo me sinto triste por Estefânia, falou o Emergaldo, baixinho. Como foi? Questionou a mãe. Nada não. Sentaram. Pesou. Comeram. Por Aí, Cavalheirinhos de terno e gravata, véus e grinalda.

Um comentário: