domingo, 7 de agosto de 2011

A saia vermelha

Aquela saia vermelha tomava todo o espaço da vista abaixo. Olhou para o espelho repousado na parede de sempre. Reparou mais uma vez na discreta trinca que o caracterizava de tal maneira. Tal maneira! Deixou a serenidade a tomar conta: dá-lhe as contas da vida e da saia vermelha acetinada. A saia vermelha que chegava aos pés, que podia passá-los e ir além. Reclinou-se ao som de um triste tom, formando um arco com a própria coluna. Alcançou a ponta da sapatilha e se fez alongar lentamente. Sentiu o trincar. Para direita. Trinca, esquerda, trincou. Dali já saiu para o salto. Pois se fez em cima, girando frenéticamente, com o soar do vermelho em seus intrínsecos olhos, fitados no ponto de equilíbrio. Suba em direção ao sem fim, joga-te ao lado como prisioneira de si, entorne a convulsão do sangue pulsante, estimule o quanto deve gritar o jorrar do interno para então adormecer na quietude do buraco daquele chão tão e todo, por tudo, especial. Do leve sono, colocou-se em pé, deu voz às vozes, suspirou no velho espirro, deu-se para movimentos leves, e leves, penosos, voantes. E voa, para cima, para os lados. Os braços iam num confluir intenso, dispersavam e tímidos, e novamente, e esvoaçantes, coalesciam na imensidão embutida. Jurou o salto épico, olhou para platéia de si, sorriu brevemente o sorriso de dor contida por felicidade, jogou-se do precipício, se fez marcar e se fez dizer, se fez tomar e beber, se fez entregar, ouviu falar. Falaram de si, falaram dos outros, falavam dela. Travou a ponta do pé sentindo o urrar dos dedos, travou os braços como numa cruz e atingiu um ponto de equilíbrio. Abaixou a cabeça, respirou fundo, mordeu os lábios e suplicou à Deus baixinho. Disse não se entregar, gritou e explodiu. E vôou intensamente o vôo de pouso, com as pernas bem ditas e bem resolvidas do destino a tomar, abraçaram a vida e entenderam por sua, seguindo por baixo de todo aquele pano uma linda aparência de segurança cíclica em si. Daquele momento em diante se resolveu protagonista, entregou-se ao espelho, disse ter visto mágica, não entendeu o que aconteceu, atribuiu tudo à queda e sorria em paz. Na paz de pousar e derrubar uma lágrima por inteira indiferente, mas endógena e possuída da experiência por completo. De vida e da vida, assim como tudo, diga-se de passagem, era tudo, tudo que estava lá.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quanto às manias

Tocava uma música loucamente clássica de fundo. A mesa cintilava, não sabia bem daquele material. Pela mania de manias, lá estava ele. Os cabelos grisalhos davam aspecto largado, batido. Os óculos estavam largos. Já há algum tempo não comia. A mulher dizia, não sabia o porque do bem bolado de TOC. Fala de TOC, TOC, TOC. O único TOC que sabia era do que afirmava ouvir quando batia à porta daquele laboratório, o qual lhe arrancava o marido por dia, vezes, dias, anos, ano a ano. Pois já diagnosticava para vizinhas o rústico certeiro destino que levantava o soar das vozes abafadas das redondezas: Pois veja, presta atenção! Chamo-lhe louco, chama-se maluco, sanatório. Não comparece ao serviço, diz que agora trabalha em casa, e veja se pode, entre tantas fórmulas, haveria mesmo de ficar maluco. E pobre coitado, o trancafiado. Pois por vezes a Dona Senhora Mulher enxergava no marido aquele olhar pouco despertado desde que o tal resolvera desenvolver suas misturas caseiras. O olhar interessado do Homem que lhe despertava um frio na espinha, e borboletas no estômago. Suplicaria ali mesmo, olha para mim, olha, olha, ó. A voz sumia. Cabisbaixa. E, ó, que como por vezes terminava após uma sessão de arrumação, a vizinha vinha ajudar, ficava linda para ele nem sair. Penteava os cabelos para não ser vista, perfurmava-se para as paredes. A vizinha vinha com o mesmo discurso, hoje em dia isso é bom, ouviu na TV falar de auto-estima, perfuma-se, mulher, para si! Gasta o dinheiro desse homem, o endiabado que nem te liga. Outras vezes, aconselhada, dizia esquecer da comida, decidia por si viver introspectiva, visitava os pais, voltava, assistia à TV. E, quando o via, insistia aquele em falar de TOC e de obsessão. Por demais! Não sabia o que era obsessão, que falta de senso. Se sentia humilhada, fantasiando os antigos bailões da onde toda sua compreensão foi retirada. Mas aquele dia foi diferente. Saiu daquele galpão com ares de novo. Ainda repetia TOC, TOC, TOC, mas, dessa vez, com mais entusiasmo. Era quase um entusiasta, veja bem! Olhou-a com aquele olhar de descoberta, e ela lá, com o vestido em trapos e o cabelo jogado, acanhou-se, envergonhada. Ele a puxou para si, abriu a champagne de dezessete anos, ambebedou-se, a amou, e a girou na valsa eterna, girou, e girou. Rodou a barra da saia da velha Moça. Comemorou aos infinitos Deuses, agradeceu e Ela nem soube porque. Os suores se molharam e as salivas, enfim, se selaram. Ela disfarçou naquele sorriso torto, plantou esperanças como se renascesse um morto, e deitou na espera do corpo quente dele logo ao lado. Repousou uma xicára de chá com pinguinhos de pinga na cabeceira do Homem que amara, amou. Ama. Porque não? Ama. Ele, antes de se recolher, o que há muito não fazia, resolveu tomar um banho. Tinha ali uma mania que tanto tenta entender de manias, que tanto, por toda a vida tentava resolvê-las. Pois só tomava banho com as mãos para cima, e não podia ser de outro jeito. Pensou em si. Pensou na Mulher na cama. Pensou no que sempre fora. Fez força. Fez força consigo, força da mente. Abaixou as mãos e os braços. Fitou-os. Balançou a cabeça aos lados e logo voltou a suspendê-los. Algumas coisas não mudam. Nem com descobertas coringas. Nem com fórmulas milagrosas. E lá estava ela, esperando o soar de TOCs vindos dele, com toda a ansiedade do que ignorava ser algo, mas, por hoje, era, por demais, bom. Olhou para cima e sorriu com ênfase. Ele saiu saltitante do banheiro. As mãos ao alto, se abaixavam lentamente. Santa Hipocrisia. E que, quão, Santa. Amém.

O Oi e o Tudo Bem

Só de ouvir me vêem uivos, vocativos e orgulho dominando as úlvulas. As cordas tremem, vejam porque escrevem. Estão abominando os Ois. Os mais íntimos os trocam por nomes, Amores, Amigos e até, por vezes, usam um tom enfático, animado. Os não íntimos, por Chefes, Colegas, Camaradas e Reis. Até então, o Dom não bate a porta. Digo sobre orgulho dos que não se falam, dos que não são inferiorizados de modo algum, e, sobretudo, dos que se pensam, juram ver e se sentem inferiores. Por assim dizer, Oi. Simples Oi. E, pois, quando era criança, lembra da mãe dizendo, diga oi para ser educado, dizia, pergunte se está tudo bem para ser simpático, e frizava, timidez se confunde com antipatia. Hoje decidira que não fazia questão da simpatia. Não fazia questão de agradar os que gostam e os que gosta. E tomara uma forte decisão de que os outros teriam de lidar com cumprimentos mais diretos, que não traduzissem afeto, mas apenas uma conversa necessária, entende? Uma conversa por vezes criativa, introduzida por piada, por Hi, Hello, Buenas Noches, mas uma conversa nada mais que sem cumprimentos ideais. O que seria o ideal? Tornar a conversa que se deseja necessária. Fazer soar um trabalho, um favor, um destoante da vida, algo como que uma obrigação, entende? Tudo em volta se tornara um monte obrigatório, de modo que nem mesmo a morte era opcional. A vida se tornou de chatos e os que faziam bem era a obrigação mais inoportuna: dos Nãos da vida, tirou-se o grande tamanho do desprezar para receber, do esnobar para tornar difícil, do chutar para ver correr de volta, de tudo que vai e vem. E, deveras, os que se fazem dificeis e complicados? Tão cansativo. Cansa. Uma solidão presa em si, de poucos verbos, de ansiedade, de não ação. O sujeito passivo e vitimizado, de agora para adiante, para sempre e mais sempre. Agora atente-se para o que corria nas ruas e chegava ao ouvido de todos! Préstimo ao que descrevo no que segue, o teor é fofoca. O Oi dizia com lágrimas nos olhos ao Tudo bem que sentia saudade, que sentia a falta de humildade e pedia perdão pelo pecado que não cometeu. O Tudo bem aos prantos pesava por algum dia ter assumido aquele caso de laço, vínculo e, porque não dizer amor. Disse que não pretendia, mas que não via culpados. Disse ao Oi, vá, volte, me visite. Ouvia-se o burburinho para todos os lados. Pois bem, naquele dia, todo são resolvera espalhar Ois pelo mundo. Decidiu descomplicar todas as visões, decidiu que não seria orgulhoso com si próprio, ou não faria o mundo todo aos seus pés. Pois então, do menos inferiorizado era o mais infeliz, embora o fingimento estivesse logo atrás do espelho. Aliás, questionava o que estava atrás e o que vinha à frente. Deu-lhe um beijo no espelho, um salto, foi simpático por si, escreveu o orgulho no papel e o jogou pela janela até ver adiante no ladrilho. Assouviou e balançou a cabeça feliz para o padeiro. Respirou fundo como não fazia questão há tempos, deixou de escurecer a vida por obrigação e foi ser feliz. Foi perguntar se estava tudo bem com as pessoas. Aquilo o completava, sem ser absolutamente e, por tudo, necessário. Mas preferia não ser vazio. Cansei da convardia humana. Não suporto mais. Abdico de todos esses em minha vida. Cansado, mundo, cansado da covardia alheia. E todos foram felizes, talvez até para sempre. Semeia esse sorriso antes desinteressado. Semeia para sempre. Talvez, e até. Para Sempre.

Fantasmas Felinos

Contava que, naquela época, gostava de caminhar a observar a grande represa. Era água a maré, água inimaginável, parecia mar. Não tinha ares de mar, mas tinha vista tal como a que ele proporcionava. Encontrava os como ela, que caminhavam ou corriam. Encontrava com pedreiros que construiam quiosques. Encontrava com as tentativas de formar ali um jardim botânico, para obstruir a linda vista maritima como lindas (ou não tão lindas) árvores. Curiosamente, em certo ponto, encontrava com gatos. Muitos gatos. Gatos demais. Gatos daqui, gatos pra lá, gatos acolá, gatos ali. E os gatos se misturavam com as capivaras. É de se imaginar que a Senhorinha Dona daquela casa era por demais sólida, sofria de mania de gatos, pois logo se via que tinha muitos gatos. Eram gatos negros, gatos mesclados, gatos parecidos com os de antigos amores, gatos brancos, gatos de todos os tipos. Eram tanto os gatos que começou a intrigá-la. Pensava que além disso a Senhorinha era fria por demais, por acontecer de deixar tantos gatos por ali, perdidos na vida e da vida, a olharem a paisana, sem comida certa, com muito sol, sem expectativas, sem dia seguinte. Pois gato haveria de querer ser gente na vida? Com certeza sim, quem não almejava pelo sol do dia amanhã? O gato talvez não quisesse tanto assim o sol. Por vezes devia apenas querer um dia nublado, mas poderia apostar que sonhava com o dia. Com o próximo dia, a próxima noite, a próxima refeição. E quem dirá que essa viria? E lá estava um gato imponente, que não se afetava com a dita situação, não se incomodava com a falta de comida e, caso se incomodasse, não pareceria se incomodar. Pois bem, encarou-o. Estava estático como estátua, intrínseco e tal como um tetânico que não sai do lugar. Nem ligou para seu olhar intimidador. Afetou sua alma, balançou a auto-estima, mexeu com algo de dentro. Cambaleou as pernas, se sentiu ofendida pelo encarar duro e comprou a briga pessoal do gato que a fez sentir mal. Olhou uma última vez, e lá estava a estátua felina. Branca com manchas claras e esverdeadas. A verdade é que o gato não se afetava com ela. Nem mesmo o gato. Resolveu que iria chamá-lo de um gato. E saiu logo dali, fugindo de todos os seus fantasmas.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A fome das lembranças

Lembrou-se de quando era criança e apossava tudo o quanto podia na bolsa dada pela madrinha. Era uma bolsa cor-de-rosa, média, com um laço enorme bem característico. E por tudo quanto passava incluía em si. Incluía para si. Aquele sentimento de posse e de tudo certeiro em volta diagnosticava como que para sempre o que poderia ser externalizado. E, agora, se via ali. Aguardando reações, outros, destinos, mortes. A sua. Recusava o pensamento de que deveria, em algum momento, se apossar desses também. O que lhe era externo também era seu, mas, a partir do momento que se tornava seu, não lhe era mais externo. As coisas, na verdade, lhe pareciam muito mais bonitas quando encaradas de dentro para fora. De fora para dentro nunca pareciam tão vistosas e, por vezes, e quantas vezes na vida, chegou a doer e atingir pontos tão acertados da alma. Mesmo quando a alma estava vazia e diziam vozes intuitivas de que as coisas haviam de melhorar, não cessavam nunca os tiros que raspavam daqui e de lá e que faziam doer, dorzinha, dorzinha de fundo, na música que se escuta, nas memórias abafadas. Era isso que tinha para ver ainda, o abafado. Fitou o guarda-roupa de madeira envelhecida, escura, com riscos claros e dispersos em seu comprimento todo. Parecia mágico, o condão que libertaria tudo que tinha dentro. Olhou o tapete desbotado de vida, e em cada desbote conseguia ver a lembrança na matéria, toda ali, eternalizada. E quão queria eternalizar o edílico? Quem se interessaria pela vida alheia? Quem entenderia o paradisíaco dos objetos? Quem doaria parte de si por preservar aquele monte de tralhas? Pois sim, sua vida tinha virado aquele monte de tralhas. E a janela logo ali ao lado era a porta para o que vinha depois. Haveria de ser. No que se apegaria? Na luz? Haveria de ter luz? Se todos pintam e contam empolgados sobre a escuridão que vem...Sobre as vozes que cessam. Se todos preveem com orgulho uma cena de medo, um filme de terror em que se esquece de viver. Quem saberá o que será a morte enfim, a tempo de se apossar de tudo. Antes esquecer o que tiverá em vida. Vozinha diz que não. Vozinha não prevê o fim tão fim. O barranco despanca logo ali. Vozinha diz: A posse! Lembra a posse! Joga-te do barranco, agarra a posse, aquela mesma posse! Resolveu então trancar o velho armário para sempre. Agarrou tudo que era seu, desesperadamente atrás da tal posse. Jogou tudo dentro daquela bolsa cor-de-rosa que fomentava o processo. Se esqueceu do a seguir e em segundos tudo já era tão mais seu que daquele guarda-roupa cheio e trancado. O guarda-roupa tinha objetos.Aquele monstro traduzido. Ela tinha a bolsa em si. Na memória. Ela era a bolsa e levava consigo todas as lembranças do mundo. Para onde fosse, e para sempre, em um ímpeto eterno de caretas e sorrisos de momentos esquecíveis, porém, eternos naquela escuridão do sem fim.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ser ou não ser da questão Doméstica

Tum, tum, tum, roda gira, gira roda, pedra aqui, mato acolá. A conversa viria animada, ela olhava adiante, logo na janela do carro. Fitava a vegetação por qual passavam, sem perspectiva alguma e de cabeça vazia. O interior adentrava e ficava mais quente. A conversa, de fato, encalorava, se embrulhava e tal quanto calorosa como o suor de corpos ofegantes em abraços saudosos. Pois bem, chamou-lhe logo a atenção o teor que seguia, e ralhou a colocar-se atenta. "Mas Dona, olha bem pra isso, seiscentos reais! Seis quilogramas por seiscentos reais!". Colina, colina, pinheiro. "Meu filho, preste atenção nisso, dia das mães é logo mais, deixe de ser besta!". Amarelo, azul. "Mas precisa ver, Dona, precisa ver como lava! O dono da loja me contou tudo, disse que não vai ter promoção igual essa não. Diz que não gasta nadinha de nada, Dona, que nem usar sabão ela usa!" Verde. "Careça, menino, e você lá precisa de lavadora? Tá igual a vizinha da frente de casa, comprou uma de doze quilos, trabalha que é uma beleza e a embestada desata a lavar roupa. Imagine só se não devia jogar tudo lá dentro. E sabe que me dizem que isso mancha a roupa, mas a lá de casa não." Pinheiro. Vaca. "Como que mancha, Dona, se a despiroca trabalha a valer?". Carro. Nuvem. Carro, nuvem, placa. "E diga lá, ouvi dizeres que quanto mais velha, melhor trabalha. E me diz pra que gastar todo esse recurso com essas modernidades, meu filho? Há de enriquecer comprando tudo que for útil e antigo. Na casa que eu trabalho a máquina é velha, mas faz serviço. Sempre dá enrrosco, o moço que vai fazer o conserto já disse que qualquer dia não dá jeito, mas ele quer é comprar aquela máquina. Avisei a Dona da casa, já disse que o malandro não acha igual". Silêncio. Silêncio. Quietude. Pinheiro. Pedra. Cabeça bate no teto e o barulho é ignorado. "Mas Dona, sabe que é mesmo verdade, dia das mães é Domingo, vou dar uma procurada lá no centro, devo achar mais barata. Às vezes de até 8 quilos! A senhora tá é certa!" Amarelo forte. "Pois é, quando eu digo, é experiência, meu filho, deixa a gente esperto com as coisas da vida". Quietude. Ímpetos demasiadamente confortantes, como quem chega cansado e tira o sapato, e assiste ao filme em sofá de casa, ou quem dorme no frio em edredons. Coisas da vida.

Borboleta

Olhava para cima e imaginava alma aos ventos, subindo de si para as direções, coordenadas, diversas, diversos, sentidos, sentia. Sentia. Podia mesmo sentir a alma indo embora e murmurava um adeus de choro impresso dentro, suplicante por entre os dentes, escorrendo por entre as diversas e milhares de almas e facetas de sua personalidade. Que se iam. Que deixavam. Que se foram, com aquela tal volatidade das coisas. Era branca a alma, era tudo branco. E via. E sentia aquele chorar baixinho e preso, na gaiola da laringe em edema, do edemaciado pessoal, e de edemas recorrentes. Canção, cante agora. Toca na sua vez de tocar, leve consigo a melodia serena e tudo aquilo que com ela se deve levar. Leve a alma lá para cima e bem junto do Senhor. Implorava com os olhos fumegantes e sem sentido. Fitava o escuro do teto e o céu logo acima com certos pedidos embutidos. Não sabia do céu, do azul ou do preto, não sabia do negrezar que vinha depois, sabia do branco. Ô, alma, corre branca, mas abranda. E vai devagar. Vai, lentifica, porque as incertezas traduzem ainda um hesitar perene. E diz-se ainda implorar um desejo na valsa dos brancos de cenário negro, na dança do escuro com pés vestidos em claro, com contrastes de corações em paz. Pedia e suplicava e implorava e olhava com o brilho dos olhos: olhava para a claridão. Pedia ao Senhor para ser borboleta. Dizia que queria as asas. Queria asas. Queria bolas coloridas. Precisava do colorir, da janela bonita, da paisagem verde, das tecnologias enterradas. Só queria ser borboleta. Borboleta longe do sol, longe das almas e perto da alma. Queria ser borboleta, do Senhor, Senhor. As asas. Coloridas. Cirandas. Queria uma ciranda de crianças no concreto pintado de amarelinha e quatro-cantos, queria uma cantina logo ao lado e o chão de ladrilhos vermelho. Queria a mancha do geladinho rosa que a menina não pagou. Queria a missa na Igreja bonita, enfeitada para todo dia. Queria uma sala de artes, com guache. Apreciava ser criada e colorida por crianças, por todas as mãos e todas as cores. Queria uma parte delas para si e a infância. Pedacinho da ciranda que roda. Era vidro e se quebrou. E vazou. Os pincéis se misturaram e, com eles, todas as cores do mundo. Vamos dar a meia volta. Borboleta voou. Feliz. E voou.